Entrevista com Ruy Gardnier

Esta é a segunda da série de entrevistas elaboradas pelo GRACC que serão publicadas ao longo dos meses de abril e maio de 2007.
As resposta são de Ruy Gardnier, crítico da revista de cinema Contracampo <http://www.contracampo.com.br/>, para ele "Na produção mais ousada formalmente, o cinema permanece insuperável".


Em recente entrevista ao jornal Folha de São Paulo, o roteirista norte-americano Robert Mckee afirmou que o “futuro da narrativa audiovisual está na televisão”. O que o Sr. acha das relações estabelecidas entre cinema e TV no Brasil?

Me parece que, na produção chamada regular, a desenvoltura das séries americanas é maior que a do cinema, a relação social é mais dinâmica. Que objeto audiovisual vai ser o ícone das "mulherzinhas" balzaquianas dos anos 2000, sex and the city ou o diário de bridget jones? O fosso é profundo... Da mesma forma, uma série como 24 Horas inova num formato e aponta para uma nova fase do thriller, o que já se pode ver em filmes como os últimos 007 e MissãoImpossível. Mas a televisão ainda vai precisar comer muito feijão com arroz para fazer um "Mal dos Trópicos", um "Juventude em Marcha" um "Elefante". Na produção mais ousada formalmente, o cinema permanece insuperável.

Aqui no Brasil, pelo menos uma parcela da crítica, não vê com bons olhos uma relação de diálogo entre Cinema e TV...

Uma parcela da crítica exibe um elitismo de butique em que o cinema aparece como um espaço de nobreza e a televisão aparece como um espaço de vendas. Eu não partilho dessa visão a respeito de nenhum dos dois, mas não é por isso que vou dar passe livre à produção audiovisual brasileira, que anda conformada e reacionária. Mesmo os reality shows, que em algum momento pensamos que iriam renovar a dramaturgia televisual, se mostraram como uma coisa terrivelmente banal, apenas ligeiramente (ênfase no ligeiramente) mais lúdica e interativa do que o resto da programação, e remetendo a um cenário de Brasil e de juventude que certamente me dá nos nervos.

O jornalista Daniel Piza (Jornalismo Cultural, ed. Contexto, 2004) afirmou que a relação da crítica de cinema com a produção nacional passou, desde 1994, por um certo paternalismo e “confundiu-se a satisfação por ver sua retomada com o mérito verdadeiro de cada um dos filmes”. Qual a sua opinião sobre o relacionamento entre crítica de cinema e o chamado Cinema da Retomada?

Eu concordo com o Daniel Piza a esse respeito. Até 1999, 2000, mais ou menos, toda a comunidade cinematográfica viveu um delírio de achar que cada filme brasileiro, só pelo fato de já existir, merecia ser defendido. Ainda hoje existe uma certa complacência geral, e, naturalmente, sempre vai existir aquele crítico ou jornalista que faz o perfil "baba-ovo" e defende o cinema brasileiro como um todo.

O cinema nacional sempre foi visto com desconfiança por grande parte do público brasileiro, acostumado com o modelo norte-americano de se fazer cinema. Como a crítica, principalmente aquela escrita em veículos de comunicação mais abrangentes, pode contribuir para amenizar esta desconfiança, embora não seja esse seu papel?

Por muito tempo, a crítica brasileira refletiu essa mesma desconfiança. O termo "colonização cultural" é forte e muito carregado, mas de alguma forma a classe média urbana brasileira se inscreve mais ou menos nesse padrão de desconsiderar o filme nacional na relação com o filme americano. Me parece que a crítica deve atentar para o fato de que assistir a filmes brasileiros é importante porque se referem a algo que o público vive, a um caldo cultural que o público reconhece, à língua sendo falada, à dramaturgia sendo feita perto de você. Mas não creio que ela deva ser condescendente com os filmes, jogando-os no alto de uma hierarquia à qual eles não pertencem.

Certa feita foi mencionado num encontro internacional que os filmes brasileiros pecavam por serem “brasileiros demais”. Como você definiria o cinema brasileiro atual?

O "cinema brasileiro atual" é uma generalização que impede qualquer síntese significativa. Existem filmes que dialogam com um cinema de autor internacional ("Cinema, Aspirinas e Urubus", "O Céu de Suely","Crime Delicado", "Lavoura Arcaica"), existem filmes que usam a brasilidade como índice de exotismo (todo Cacá Diegues, "Ó Paí Ó"), existem filmes industriais, geralmente péssimos ("Muito Gelo e Dois Dedos d'Água", "A Grande Família", "Se Eu Fosse Você"), que têm um interesse nacional restrito – o que acontece em toda produção mundial, especialmente a comédia – e por fim existem os grandes filmes OVNI, como "Serras da Desordem" e "O Signo do Caos", que vão por caminho sem nenhum paralelo com o cinema contemporâneo mundial. Mas não é a esses filmes, infelizmente, que a frase da pergunta se refere. Essa frase é utilizada ideologicamente para legitimar a produção, dizendo que não fazemos sucesso no exterior porque somos autênticos demais. Acho isso balela de gente mal intencionada.

Em Junho de 2001, a professora Ivana Bentes publicou no Jornal do Brasil o artigo “Da estética à cosmética da fome”, iniciando uma polêmica que até hoje é tema de debate em universidades e fóruns. O artigo acusa o cinema brasileiro de se valer da miséria e da violência para entreter e atrair o público às telas. Qual a sua opinião sobre este embate que envolve principalmente o filme “Cidade de Deus”?

O cinema das leis de incentivo é um fenômeno de classe média alta, e os filmes que tentam mostrar o "outro" dessa classe acabam o fazendo sob um modo fantasmático, atribuindo a ela uma alteridade ora mágica, ora assustadora, carnal demais, selvagem demais, desassistida demais. De Central do Brasil a Cidade de Deus, existe sim um exotismo (talvez o mesmo exotismo, talvez exotismos diferentes, dependendo de como se vê) sendo trabalhado na construção desse "outro". Não sei se o termo da Ivana é o mais apropriado, talvez ele seja mais um slogan do que um conceito, mesmo porque o grupo do cinema novo, principalmente os cineastas ligados ao CPC da UNE, também trabalharam o povo de forma fantasmática, e trocar o sujo pelo limpinho (a idéia de "cosmética") pode deixar tudo mais estéril – o que é, de fato – mas não torna mais errado.

Assim como imagem e linguagem não se separam de uma produção audiovisual, é inevitável deixar de analisar a construção cinematográfica brasileira a partir de uma contextualização com os cenários político, econômico e social. Para você é possível imaginar ou mesmo ter o cinema brasileiro como um conjunto consistente e dotado de identidade em meio a uma comunidade em crise?

Quando a gente vê consistência demais numa produção, é por causa dos nossos olhos, e não da produção. Refluxo sociológico ou historicista demais. A produção cultural de uma sociedade reflete diversos pontos de vista e formas de existência distintas que fica difícil subsumir em categorias generalizantes. Ainda assim, é claro, pode-se sempre aproximar certos traços aqui e acolá e construir identidades. O problema é confundir essa construção com uma realidade que esteja de fato em toda a produção. Dito isso, me parece que o cinema brasileiro de hoje é um conjunto consistente da mesma forma que foi no passado e da mesma forma que será no futuro. Não houve identidade na décade de 60, na década de 70, 80, 90 nem nessa nova década. O que há é discursos que diminuem a diversidade e se montam como expressão da verdade. É preciso combater essas interpretações simplistas.

Qual a sua opinião sobre a descentralização dos espaços da crítica de cinema que hoje migrou sobretudo para a internet?

Quanto mais espaços melhor. Naturalmente, estatisticamente falando, o número de pessoas que lê a crítica de cinema de O Globo é muito maior do que o número de pessoas que lê a Contracampo ou a Cinética. Da mesma forma, é verdade que, quanto mais especializada uma publicação, menos público ela vai atingir. Hoje em dia a crítica de cinema de internet –sobretudo as duas que eu mencionei, e a Contracampo em especial – trabalha no sentido de expandir o repertório de filmes, de fugir da opressiva agenda dos"filmes em cartaz" e propor outras pautas, outras polêmicas, outros questionamentos. Mas me parece que, de forma geral, o público pede mais do mesmo. Acho que teríamos muito mais leitores se fizéssemos dossiês Woody Allen ou Fellini ou Antonioni ao invés de chamar a atenção para novos diretores como Jia Znahg-ke, Hong Sango-Soo ou Apichatpong Weerasethakul. Mas nós fazemos o que nós queremos, e continuaremos fazendo. Quem quiser nos acompanhar, que seja bem-vindo. Hoje, isso só pode ser feito na internet.

Uma câmera na mão continua valendo.



Não ter orçamento suficiente para o apoio das questões cinematográficas, no Brasil, se tornou mais clichê que a bandeira dos EUA nos filmes norte-americanos e que as gueixas nos filmes orientais. Mais que um obstáculo, principalmente para o cinema “não-comercial”, muitas vezes isso se transforma em impedimento, em impossibilidade de realização, podando o aparecimento de bons filmes, de potenciais diretores, de grandes produções. Contudo, podemos dar um “Ufa!” por existirem grupos que se desvencilham dessas barreiras e produzem filmes geniais, como é o grupo Trauma (Tentativa de realizar algo urgente e minimamente audacioso). Uma de suas realizações é o filme “Cama de Gato”, de Alexandre Stockler, produzido com o investimento de R$13.000 e contando como um de seus personagens centrais o ator global Caio Blat. O filme, um tanto polêmico pelos quase 17 minutos de exibição da cena de estupro, vem trazer à tona o perfil dos jovens paulistanos, da classe média-alta da década de 90, ávidos por diversão a qualquer custo. O filme é uma ficção acrescida de passagens documentais e adquire uma conotação bastante original por se despreocupar com a técnica e a linearidade da trama e dos personagens. Vale mencionar ainda que "Cama de Gato" foi considerado, por algumas críticas, como o "Laranja Mecânica" brasileiro. E, independentemente de a comparação ser válida, "Cama de Gato" é autêntico e pode ser considerado um sobrevivente, em grande estilo, às condições cinematográficas do Brasil. Um viva ao "Cama de Gato"!!!

“Ó Pai ó” é tema de encontro jornalístico

Alunos de jornalismo promovem amanhã (18), o debate “Ó Paí Ó e cinema baiano: novas perspectivas”, no Auditório Zélia Gattai, nas Faculdades Jorge Amado. O evento está previsto para o período das 8h às 22h30. No período da manhã será debatido o crescimento e os novos caminhos do cinema baiano, quando estarão presentes nomes do cinema baiano como a produtora e diretora do Festival de Cinema Panafricano, Fátima Fróes; o crítico de cinema André Setaro, professor da UFBA; a diretora do Dimas, Sofia Frederico; e Pedro Léo, ganhador do prêmio Braskem 2005 de roteiro para curta-metragem. À tarde, serão exibidos longas, curtas e documentários produzidos por cineastas baianos. Das 19h às 22h30 acontecerá o debate “Ó, Paí, Ó: o cinema e a cidade desigual”. O texto de Ó, Paí, Ó, que ganhou várias formas de expressão, denuncia a violência contra crianças na cidade de Salvador, enquanto a vida do baiano comum segue dura, mas repleta de gozos e belezas. Estarão presentes na mesa Luciana Souza (que faz o papel de Joana, a dona do cortiço do Pelourinho); Márcio Meirelles, autor da peça e atual Secretário de Cultura do Estado da Bahia; o sociólogo José Maurício Daltro, do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS); Jecilda (Pró), presidente da Associação dos Moradores e Amigos do Centro Histórico (AMACH) e atores do Bando de Teatro Olodum. Passados 15 anos, a bem-sucedida peça foi adaptada para o cinema e chegou às telonas em 30 de março. Também será tema de um seriado na rede globo, com gravações previstas para setembro.

Ops, eu ri mesmo daquilo?


Borat, o falso documentário longa metragem do comediante inglês Sacha Baron Cohen se propõe a denunciar, através do riso, os costumes "estranhos" da sociedade norte-americana. Borat Sagdiyev, repórter cazaque enviado aos Estados Unidos para aprender os modos de vida americanos para benefício do Cazaquistão, põe em cheque as convenções da terra de Bush contextualizando-as em quadros onde se sobressai o seu lado ridículo. Talvez a cena que melhor resuma esta abordagem seja quando Borat inflama o público de um rodeio com seus clamores cada vez mais desumanos ("que os EUA não descansem até matar todos os homens, mulheres e crianças no Iraque"; "que Bush possa beber o sangue de cada terrorista..."). O público passa de entusiasmado a revoltado ao perceber que suas posições os tornam condenáveis pelos próprios valores que cultuam.
Borat, contudo, não é um olhar do Oriente Médio sobre o Ocidente, mas sim uma obra metalinguística dos americanos sobre si mesmos. Curiosamente, a mesma abordagem praticada para denunciar as contradições da sociedade que, antes, havia sido designada para ensinar um estilo de vida ao Cazaquistão, poderia ser aplicada nos países do Oriente Médio, que clamam por paz e liberdade enquanto nutrem paixões discretas pela antigas formas de Estado Teocrático. Borat diverte por fazer uma autocrítica (ainda que disfarçada de crítica) leve e ácida. Dá pra fazer pensar sem pretender formar ativistas.

A crítica e o cinema

Na busca por alguma informação passível de post acabei achando os levantamentos um tanto quanto eufóricos do cineasta e diretor de fotografia Murilo Sales em relação à crítica no Brasil.


A crítica e o cinema
Oxigênio já!

Murilo Salles
Cineasta e diretor de fotografia

Temos hoje no Brasil uma produção de cinema plural e consistente. O Cinema Brasileiro está fazendo seu dever de casa bem direitinho. Será que a crítica ensaística está preparada para ''pensar'' esse cinema com um instrumental formatado para dar conta do complexo sistema de produção cultural num país como o nosso? Sendo mais direto: que país é este? Que cinema é este? Que crítica é esta?
Existe uma tradição ensaística de excelência na crítica de cinema no Brasil, com Paulo Emílio Salles Gomes e Alex Viany (também cineasta), críticos que legaram uma obra consistente e de qualidade sobre nosso cinema. Mais recentemente, uma nova geração, capitaneada por Ismail Xavier, continuou e aprofundou essa tradição crítica, com José Carlos Avellar e outros. É claro que, quando falo de crítica, falo da crítica de estrutura, das análises críticas, não dessa baboseira impressionista e desinformada que é publicada em nossos jornais, revistas e, agora também, nas televisões.
Não quero, aqui, perder tempo e esse espaço valioso para discussão crucificando a crítica de juízo de valores, como Barthes chamava essa crítica ''impressionista''. Não vale a pena, ela nasce morta, só serve aos interesses do sistema de comércio do entretenimento (jornais, revistas e televisão). Estamos falando sobre a crítica ''inteligente'', ensaística, que tem vários de seus expoentes pensando o cinema brasileiro de hoje. E para eles coloco a questão, crucial para mim: será que essa crítica nos empurra (os cineastas) para um lugar de reféns da obra de Glauber Rocha, do Cinema Novo? Será possível tecer um recorte crítico pertinente sobre a produção do cinema brasileiro atual mediado por conceitos/ ferramentas que foram/ são válidos num recorte sócio-cultural anterior? Ou melhor, será que essa crítica ainda está operando com conceitos viciados, antiquados?
Por que não oxigenar a discussão, tentando perceber mais profundamente a complexidade sócio-cultural da pós-modernidade à qual fomos submetidos, os cineastas brasileiros preocupados com produzir um cinema instigante? Será que um certo modelo ''órfãos de Glauber Rocha'', encarnado por essa crítica, permite que ela perceba os indícios de inquietação que possam existir nos filmes brasileiros atuais? E, além da inquietação, que é um sintoma juvenil, será que consegue perceber que existem tentativas de produção de pensamento no atual cinema brasileiro? Afinal, o trabalho da crítica é se auto-renovar num processo incessante de reavaliação dos critérios e ferramentas que usa para seu discurso.
Murilo Salles participa, com José Wilker, Eduardo Valente, Rodrigo Fonseca e Carlos Alberto Mattos, do debate sobre crítica de cinema, hoje, às 18h30, no CCBB, como parte do simpósio 'A arte da crítica'. Senhas gratuitas distribuídas a partir das 18h.

http://jbonline.terra.com.brl




<BODY>