Entrevista com Ismail Xavier na Ilustrada
0 Comentário(s) Publicado por regina gomes em sábado, fevereiro 03, 2007.sinaliza a lucidez do debate: O erro está em projetar os critérios de
um circuito no outro.
Folha de São Paulo,03.02.2007
Espelho do país
O crítico Ismail Xavier diz que o cinema brasileiro atual coincide com o momento político do Brasil ao consolidar o "pragmatismo de pobre e o ressentimento da classe média" como temas recorrentes
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
Observados com cuidado, os personagens centrais dos filmes nacionais recentes são basicamente dois: o "pobre pragmático" e o sujeito da "classe média ressentida".
Ao povoar a tela com esses tipos, os cineastas brasileiros estabelecem sua conexão com o "momento político brasileiro", em que a oposição "pragmatismo de pobre x ressentimento de classe média" é a tônica.
Ou, ao menos, foi a tônica do debate em torno da reeleição presidencial de Lula, ele mesmo uma liderança "mais pragmática do que doutrinária". Com essa reflexão, o professor e crítico Ismail Xavier abre novo capítulo na análise sistemática do cinema brasileiro, que ele pratica na academia (leciona na USP) e no ensaísmo.
A produção nacional a partir dos anos 90 cancela, portanto, as aspirações de transformação coletiva próprias do cinema novo, nos 60, e dá lugar a um "cinema culpado", com o afã de se "legitimar", cortejando o êxito popular. Xavier aborda o fenômeno, na seguinte entrevista.
FOLHA - O "pragmatismo de pobre contra o ressentimento da classe média", que o sr. identifica como tema recorrente da safra atual, se opõe ao "cinema-ONG", que, em sua leitura, marcou a virada dos 90?
ISMAIL XAVIER - Sim. Lá eu me referi ao primeiro momento da retomada da produção nacional (1993-2001), em que o cinema brasileiro conduziu um concerto do ressentimento tocado por uma galeria de personagens que se perdem por estarem presos ao passado ou por não se conformarem com uma perda ou desvantagem, partindo para ações vingativas e cobranças malconduzidas ("Ação entre Amigos", "Cronicamente Inviável", "A Ostra e o Vento").
Nesse momento, "Central do Brasil" (1998) representou a contracorrente, pois aí o tema era a superação do ressentimento. A partir de 2001, esta tônica vem conviver com filmes com a figura do pobre oprimido que dá a volta por cima e se reinventa ("Madame Satã") ou o jovem de classe média que se libera do cárcere e do pai ressentido ("Bicho de 7 Cabeças").
A comédia popular de Guel Arraes traz Suassuna como expressão da idéia da esperteza do camponês que responde a um poder mais forte ainda personalizado [o coronel]. O pragmatismo do pobre envolve personagens contemporâneos que, dentro de um quadro de violência urbana, crise de valores e hegemonia do consumo, viabilizam uma saída -de sobrevivência (Buscapé, em "Cidade de Deus"); de alpinismo social ("O Homem que Copiava") ou de reinvenção de si mesmo para preservar uma liberdade de movimentos ("O Céu de Suely").
O caso de "O Céu de Suely" se insere na nova configuração de um sertão pop nos filmes pernambucanos, que começou com "Baile Perfumado" (1997), onde já se valorizava o pragmatismo de Benjamim Abrahão como paradigma da esperteza do cineasta na viabilização do projeto de filmar Lampião.
"Cinema, Aspirinas e Urubus" é a expressão mais clara do salto havido de um sertão mítico para este sertão contaminado do moderno. Mergulha-se mais fundo nos traços transnacionais do "road movie" e no diálogo com Wim Wenders.
FOLHA - Como se dá a conexão entre a recorrência temática do "pragmatismo de pobre x o ressentimento de classe média" no cinema com o momento político do país?
XAVIER - Não tenho um modo de explicar essa conexão, mas temos um sintoma a estudar, que é essa pauta da reconciliação e do pragmatismo como dados hegemônicos na vida política e no imaginário do cinema.
Havia antes a idéia de que o cineasta tinha um mandato da sociedade. Ele representava valores de transformação, falava em nome das classes populares, do Brasil excluído.
Isso se dissolveu e hoje se tem um cinema mais preocupado em se legitimar. É um cinema culpado. Ele precisa provar que tem legitimidade. Precisa de uma penetração social que o justifique, diante de um quadro legislativo no qual determinadas leis o viabilizam. É a idéia de que, se o cinema brasileiro não ampliar sua comunicação com o público, a Lei do Audiovisual vai se deslegitimar.
Acredito que esse projeto de reconciliação tem a ver com o quadro geral da política do país. O que se tornou hegemônico na política brasileira é o pragmatismo. Não por acaso, a grande liderança que marcou a política brasileira nos últimos anos é Lula, que sempre foi mais pragmático do que doutrinário.
FOLHA - Como se deu o "mergulho mais profundo" no diálogo dos cineastas dos 90 com Wim Wenders?
ISMAIL XAVIER - Este diálogo começa a ser construído com Walter Salles e se aprofunda com Karim Aïnouz, que radicalizou uma dramaturgia dos espaços e dos encontros reticentes. Cada um a seu modo, "Central do Brasil" (1998) e "Terra Estrangeira" (1996) [ambos de Salles], trabalham situações de migração. "Central do Brasil" numa chave que lembra "Alice nas Cidades" [Wenders, 1973] -o encontro do adulto com uma criança que está abandonada, embora num sentido completamente diferente.
Podemos ver a presença de Wenders também em Karim Aïnouz, onde se tem a conexão entre imigração, encontros e desencontros e a pauta de personagens angustiadas, porém capazes de gerar uma saída.
Há ainda a questão da exploração do espaço. É um cinema que quer elaborar a passagem dos personagens, mas sempre com maior ênfase a uma documentação do espaço do que propriamente em desenvolver os conflitos dramáticos.
É um cinema de escoamento do tempo e de contemplação, de interiorização da paisagem.
Em Wenders, essa questão do espaço é fundamental. Não diria que há intenção disso, mas em "Cinema, Aspirinas e Urubus" (Marcelo Gomes, 2005) há simetrias claras com "No Decurso do Tempo" [Wenders, 1976]. Você tem o encontro de duas pessoas; uma delas trabalha com cinema. Há a formação de uma amizade, a construção de uma relação que tem o sentido prático e o do afeto, ao mesmo tempo.
FOLHA - O sr. disse, no Festival de Brasília 2006, que "Serras da Desordem" (Andrea Tonacci) é seu filme brasileiro recente favorito. Por quê?
XAVIER - "Serras da Desordem" é dotado de uma convivência de temporalidades. Ele tem conexão clara com os trabalhos anteriores de Tonacci, marcados pela vontade de construir uma experiência em que o espectador é convidado a acompanhar o processo e ir montando o jogo, cujas regras só vão ficando claras à medida que o filme avança, como já acontecia com "Bang Bang" (1971). Lá, com carga maior de agressividade.
Com a trajetória de Carapiru [o protagonista do filme é o personagem real Carapiru, índio da aldeia Awá Guajá que foge durante um ataque de jagunços e passa dez anos errante], o filme expressa a vontade de tornar clara a dimensão de violência contida nessa expansão de uma sociedade que pautou sua relação com a natureza por uma idéia de dominar.
Mas, em nenhum momento, Tonacci se coloca na posição de quem realmente conhece Carapiru. O personagem permanece opaco. Não temos a ilusão de ter acesso. Não se sabe o que houve com ele durante os dez anos em que perambulou, e não há da parte de Tonacci nenhuma ansiedade de perguntar.
Não há, ao longo da relação entre Carapiru e o filme "Serras da Desordem", a ilusão de que vamos chegar ao momento em que ele vira uma personagem transparente.
Paradoxalmente, Tonacci monta um jogo em que Carapiru é o [ator Paulo César] Pereio [o personagem à deriva de "Bang Bang"], às avessas -permanece uma pessoa que está representando e não está. É ator e não é.
XAVIER - Falar no cinema no singular é sempre uma simplificação. Há o cinema-poesia, o cinema-ensaio, o cinema-melodrama, as formas da comédia, a reportagem. Faz-se com o cinema o que se faz com a palavra escrita, da comunicação mais cotidiana à ciência, do passatempo à arte que exige uma reflexão mais atenta.
Uma cinematografia precisa de todos esses pólos de produção, como a vida literária. Não se pode julgar Guimarães Rosa ou Clarice Lispector pela quantidade de livros vendidos. O que dizer da poesia? Imagine uma literatura só de Paulos Coelhos ou um cinema só de fórmulas.
O erro está em projetar os critérios de um circuito no outro. Prefiro "Serras da Desordem" e "Filme de Amor" (Julio Bressane) ou "O Céu de Suely" (Karim Aïnouz) ou o cinema de Beto Brant. É a estes filmes que me dedico, pois fazem pensar e me ensinam muita coisa. É por causa disto que vou ao cinema -como formação, enriquecimento de repertório.
Mas há quem prefira sempre "mais do mesmo" ou tome o cinema apenas como negócio, que também é. É outro jogo, do qual estou fora.
Quem questiona o custo social destas experiências, a rigor, está questionando o custo social da educação, da saúde, da segurança, da pesquisa científica, o que é absurdo.
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