Leôncio não morreu

Leôncio não morreu

Por: MALU FONTES
mfontes@grupoatarde.com.br

Todo mundo sensato sabe que a publicidade não tem compromisso com o verídico ou a verdade.
Ela serve a outros senhores, como o sonho, o desejo, a sedução e, claro, a persuasão. Para persuadir, investe sem limites na arte de emocionar. Emocionado, o sujeito perde a razão e em poucos segundos acha tudo aquilo lindo e já nem sabe sequer o que estão anunciando. Só sabe que é preciso comprar aquilo que lhe seduz.
E disso vive a economia contemporânea: convencer todos de que é absolutamente fundamental ter em casa uma série de coisas das quais ninguém precisa, sem as quais se viveu muito bem até ontem, mas que, depois de uma campanha publicitária benfeita, não dá para viver sem.
Está no ar em todas as emissoras de televisão locais uma peça publicitária primorosa, sobretudo porque produzida pelo poder público municipal. Olhada de relance, é um primor de beleza estética, uma peça quase lúdica, diante da qual a tendência mínima é o telespectador achar que seu sonho de consumo é lavar roupa na Lagoa do Abaeté e depois sair por aí, sorrindo, feliz da vida, de ônibus, usando o Salvador Card para entregar as trouxas de roupas às madames. Vista com mais atenção, no entanto, a peça não pode deixar de ser classificada como um discurso insensato contra tudo o que pregam as tais políticas públicas que não saem do papel e que falam de qualificação de mão-de-obra, inclusão, criação de oportunidades, garantia de escola de qualidade para crianças e jovens, etc.
Tudo o que se vê ali é uma homenagem involuntária aos clichês caros a essa baianidade inventada nas últimas décadas do século XX, em que tudo é produto e imagem para exportação, sejam as baianas sorridentes que, fora da vídeo, tornam-se agressivas no grau último quando os turistas não aceitam pagar por fotos batidíssimas ao seu lado no Pelourinho ou sejam os encantos da Lagoa do Abaeté, a mesma que, fora dos cartazes publicitários, é um convite explícito a um assalto a qualquer hora do dia.
TROUXA – Com o objetivo de anunciar, divulgar e promover a implantação e os benefícios do Salvador Card, o bilhete eletrônico que vai permitir que os usuários do transporte coletivo economizem pagando menos por trajetos maiores, nos quais têm que usar mais de um ônibus, a Prefeitura colocou no ar uma campanha publicitária que diz tudo sobre a mentalidade datada que a Bahia conserva sobre ela mesma e sobre as caricaturas que continua a produzir sobre seu próprio povo. Para ilustrar os soteropolitanos beneficiados com o tal cartão eletrônico, a escolha das personagens e o modo como são representadas e enquadradas foi no mínimo infeliz.No vídeo, vemos as recantadas águas do Abaeté e mulheres negras ultrafelizes enquanto lavam roupa sob um sol a pino que acentua o colorido de suas roupas e o brilho dos dentes escancarados em sorrisos.Em seguida, uma mulher negra e corpulenta, sempre feliz de dar inveja, pega um ônibus (vazio e limpo, claro, iguaizinhos aos de verdade que circulam em Salvador), carregando uma trouxa de roupas já lavadas, passadas e dobradas. Um detalhe faz toda a diferença. Uma menina, com ares de adolescente, negra como a mãe e tão feliz quanto, está ao seu lado, também carregando uma trouxa de roupa.
CULTURETE – A cereja do bolo está no discurso. Para falar da importância cultural das lavadeiras do Abaeté para a Bahia e associá-las ao mesmo tempo à “modernidade” eletrônica dos novos tempos e à importância da manutenção das tradições, a tal campanha sugere que é uma dádiva ver sendo passado adiante, de mãe para filha, o ofício de lavar roupas alheias e carregar trouxas delas cidade adentro e usando um cartão de plástico.
Ora, mas o poder público que faz esse tipo de inferência não é o mesmo que diz garantir a toda criança, jovem e adolescente o direito à escola de qualidade e à qualificação de mão-de-obra que lhe garanta, no futuro, uma oportunidade de emprego no mercado formal? Lavando roupas naquela idade, certamente a garota da propaganda dificilmente levará vantagem quando, no futuro, recorrer a uma das vagas do Serviço Municipal de Intermediação de Mão-de-Obra (Simm).
Não, não se trata de acusação de racismo nem de preciosismo politicamente correto, mas de chamar a atenção para o lugar simbólico ocupado, na propaganda ou no imaginário da cidade que a produz, por aquela menina que sorri por herdar da mãe a sina de lavadeira (ou alguém pensa que ser lavadeira é uma escolha e não uma contingência de quem não teve oportunidades?). O modo de enquadramento da garota é revelador de como a elite culturete, pensante e bem-nascida acha, mesmo que não assuma jamais que assim pensa, que deve ser o destino de meninas pretas e pobres.E ainda se dão ao luxo de achá-la uma sortuda por ter oportunidade de unir tradição (lavar roupa e andar de ônibus) e modernidade (pagar um tantinho a menos com um cartão de plástico).
ISAURAS – Assim, vai-se longe na manutenção de preconceitos. E vamos todos pensar que pensamentos dessa natureza e o crescimento da indústria de blindagem de carros e de cercas elétricas, por exemplo, não têm nada a ver entre si. Em outras palavras: quem morreu foi Rubens de Falco, o ator. A personagem clássica do senhor de engenho e da casa-grande Leôncio continua vivíssima por aqui, acredita piamente na sobrevivência eterna de Isauras pretas e vive escondido até mesmo em publicitários distraídos e gestores públicos que criam e aprovam, em 2008, uma campanha tendo como centro uma menina negra feliz por (já) ser lavadeira e acham que todo mundo vai achar lindo.

2 Comentário(s) para “Leôncio não morreu”

  1. # Blogger Caroline Martins

    Concordo que Malu Fontes até pode ter razão quando em referência à propaganda do Salvador Card...contudo, chega a ser primário o teor e o conteúdo das afirmações feitas à Propaganda ("Todo mundo sensato sabe que a publicidade não tem compromisso com o verídico ou a verdade")por ela. Não é necessário ser um estudante de Publicidade pra perceber que o que Malu Fontes invoca nesse texto é totalmente desprovido de fundamentação lógica ou teórica (salvo alguns estudiosos "extremistas" da área). Depois desse discurso (terrível) de Malu Fontes, me faltou motivação em realizar qualquer tipo de afirmação sobre a propaganda em referência.  

  2. # Anonymous Anônimo

    Malu Fontes tem razão em vários pontos, por exemplo, quando diz: "Para ilustrar os soteropolitanos beneficiados com o tal cartão eletrônico, a escolha das personagens e o modo como são representadas e enquadradas foi no mínimo infeliz" ou "A personagem clássica do senhor de engenho e da casa-grande Leôncio continua vivíssima por aqui, acredita piamente na sobrevivência eterna de Isauras pretas e vive escondido até mesmo em publicitários distraídos e gestores públicos que criam e aprovam, em 2008, uma campanha tendo como centro uma menina negra feliz por (já) ser lavadeira e acham que todo mundo vai achar lindo.". Mas por outro lado chegou a ser agressiva e generalizante...  

Postar um comentário

Busca


Blog GRACC

Um Blog coletivo sobre Crítica Cinematográfica, mantido pelos integrantes do Grupo de Pesquisa em Análise de Crítica de Cinema, do Curso de Comunicação Social da Universidade Católica do Salvador.


  * E-mail GRACC


O GRACC faz:

 

 


 


Elenco
do GRACC

- Regina Gomes
- Caroline Martins
- Elva Fabiane
- Fernanda Félix
- Gustavo Ferreira
- Lucas Almeida



Memórias
 



XML



<BODY>