Entrevista com João Carlos Sampaio

O GRACC produziu um bate-bola com o crítico de cinema do jornal A Tarde, João Carlos Sampaio. "Um filme é um filme" disse o jornalista (des)complicando a atribuição de um papel social que o cinema não pode responder.
Esta é a primeira de uma série de entrevistas elaboradas pelo grupo e que serão publicadas ao longo do mês de abril de 2007.



Em recente entrevista ao jornal Folha de São Paulo, o roteirista norte-americano Robert Mckee afirmou que o “futuro da narrativa audiovisual está na televisão”. O que o Sr. acha das relações estabelecidas entre cinema e TV no Brasil?

J.C.S.-São dois espaços bem distintos de veiculação, não é verdade? Cada qual cumpre a sua função e não necessariamente deve ter um projeto comum, ainda que, especialmente no modelo europeu, a televisão também invista muito no mercado de cinema. Se sua pergunta se refere a inserção do produto cinematográfico na televisão, podemos dizer que o cinema produzido no Brasil ainda está muito distante de uma negociação capaz de fazê-lo ocupar espaços significativos na TV. Na verdade, a televisão brasileira se fecha para todo e qualquer produto que não seja gerado nas suas entranhas. É uma formatação que se consolidou a partir da estrutura assumida pela rede líder em audiência (Rede Globo) e que se propagou para todas as outras. Enquanto este modelo persistir, a produção independente, seja ela de programas para a televisão ou mesmo criações originalmente lançadas no cinema, vai ter pouco espaço na TV.

O jornalista Daniel Piza (Jornalismo Cultural, ed. Contexto, 2004) afirmou que a relação da crítica de cinema com a produção nacional passou, desde 1994, por um certo paternalismo e “confundiu-se a satisfação por ver sua retomada com o mérito verdadeiro de cada um dos filmes”. Qual a sua opinião sobre o relacionamento entre crítica de cinema e o chamado Cinema da Retomada?

J.C.S.- Depende de qual crítica se está falando... E também do que exatamente está sendo chamado de “crítica”, já que há diversos níveis de leitura de um filme e diversos espaços e veículos que se debruçam sobre a obra fílmica, com diferentes perspectivas e aprofundamentos de questões. Não se pode negar que o novo fôlego da produção nacional de cinema é um alento importante diante do quadro anterior, quando os cineastas brasileiros estavam cerceados da possibilidade de criar. Só que isso não significa o apelo a um olhar condescendente por parte da imprensa. As concessões, existentes ou não em determinadas leituras, podem variar segundo os mais diversos fatores, inclusive, a partir da própria visão pessoal daquele que exerce alguma função no jornalismo especializado em cinema. Cada caso deve ter a sua própria avaliação.

O cinema nacional sempre foi visto com desconfiança por grande parte do público brasileiro, acostumado com o modelo norte-americano de se fazer cinema. Como a crítica, principalmente aquela escrita em veículos de comunicação mais abrangentes, pode contribuir para amenizar esta desconfiança?

J.C.S. Não é esse o papel da crítica, que deve sim promover o diálogo entre a proposta e conteúdo das obras com o público. Um cinema não é bom ou mal por sua procedência. É importante que exista uma diversidade de alternativas para que todas as filmografias do mundo possam circular mais livremente, sem tantas limitações impostas pela força da indústria. Quem pode fazer o cinema brasileiro vencer rótulos, que se consolidaram ao longo de muitos anos é o próprio filme produzido no Brasil. Um mau filme merece sempre uma crítica que aponte os seus problemas, independente de ser brasileiro ou não.

Certa feita foi mencionado num encontro internacional que os filmes brasileiros pecavam por serem “brasileiros demais”. O Sr. acha que a cultura brasileira está “adequadamente” expressa nos filmes nacionais?

J.C.S. Essa uma pergunta é das mais ambíguas! Um filme é uma obra coletiva, mas produzida a partir de um ânsia de comunicação de um autor. Vai ser sempre o seu olhar sobre determinado fato ou pessoa, fictícios ou não. Portanto é preciso combater, especialmente no meio acadêmico, esta idéia burra de que um coletivo de filmes forma uma escola ou um movimento... Não necessariamente! No caso da contemporânea produção nacional é impossível encontrar uma mesma linha de conduta, seja na produção, temática ou estética. Há filmes que se parecem e se comunicam, mas não há algo que se possa servir a uma apreciação como agrupamento de intenções estéticas e temáticas. Não há um cinema brasileiro como gênero. Há sim filmes rodados no Brasil, cada qual com suas demandas e abordagens. Cada um deles, separadamente, pode ser examinado e discutido quanto ao teor. Brasileiro demais? Que afirmação estranha! Só o filme brasileiro pode ser brasileiro, assim como só o francês pode ser francês e, assim por diante. O brasileiro médio precisa se ver mais na tela, da mesma maneira como precisamos do espelho para pentear os cabelos, isso vai fazer com que ele se sinta à vontade com sua própria imagem expressa na tela.

Em Junho de 2001, a professora Ivana Bentes publicou no Jornal do Brasil o artigo “Da estética à cosmética da fome”, iniciando uma polêmica que até hoje é tema de debate em universidades e fóruns. O artigo acusa o cinema brasileiro de se valer da miséria e da violência para entreter e atrair o público às telas. Sendo assim, qual a opinião do Sr. sobre este embate que envolve principalmente o filme “Cidade de Deus”?

J.C.S. Alguns filmes se pautam exclusivamente na busca de mercado, outros possuem ambições artísticas... Isto nos mais diversos níveis. Cidade de Deus é notoriamente um filme de mercado, mas com um grau de elaboração artística inegável. Mas se é até compreensível que um produto criado para a comercialização invista em modelos voltados a atração do interesse do público, é absolutamente condenável, que no âmbito do estudo dos produtos de comunicação, venha se usar e se valer de um expediente de impacto para vender idéias. “Cosmética da fome” é um rótulo de efeito para uma tese carente de consistência. Não mais que um slogan, aparentemente forte, para levantar conceitos sem nexo. O foco da dúvida deveria ser se há, por parte da autora do slogan, apenas o senso de oportunismo em função da visibilidade alcançada pelo filme, ou se, pelo contrário, falta capacidade de interpretação e, consequentemente, impossibilidade de perceber a obra sem miopia analítica.

Assim como imagem e linguagem não se separam de uma produção audiovisual, é inevitável deixar de analisar a construção cinematográfica brasileira a partir de uma contextualização com os cenários político, econômico e social. Para o Sr. é possível imaginar ou mesmo ter o cinema brasileiro como um conjunto consistente e dotado de identidade em meio a uma comunidade em crise?

J.C.S. Uma fita, brasileira ou estrangeira, precisa é ter projeto, orçamento, fomento, produção e distribuição. A questão da identidade se restringe ao campo analítico. Uma obra acabada pode ser discutida quanto a este quesito, mas apenas como exercício de estudo, de avaliação ou crítica. Cinema ou qualquer outra forma de expressão artística não existe para mudar o mundo ou para qualquer que seja tarefa funcional. A arte é uma extensão da própria Humanidade, um espasmo que nasce da vontade/necessidade de comunicação humana. O artista tende a refletir o seu entorno, mas não tem nenhuma obrigação social ou política enquanto criador... Isso seria a morte da arte, seria a atribuição de um papel mecânico para uma expressão humana autêntica. Quase a totalidade dos casos em que se tentou engajar a arte em questões sociais se fez panfleto de valor discutível. Um ensinamento fundamental para se assimilar é o seguinte: Um filme é um filme.


O Sr. pode traçar um panorama da crítica de cinema na Bahia e como esta crítica se relaciona com os recentes filmes baianos?

J.C.S. Os veículos de grande circulação adotaram o modelo de resenha como o mais eficaz para o tratamento e avaliação das obras de cinema, isso em quase todo o país, sem excessão. Talvez apenas entre as iniciativas restritas, possivelmente no meio acadêmico, possa se observar o exercício da crítica de cinema em sua plenitude. Quanto à imprensa especializada em cinema da Bahia - que não pode ser chamada de crítica -, quase sempre existe uma omissão de julgamento, seja por “negligenciamento proposital” ou pela simples ausência de espaços de discussão para a arte, já que a crítica infelizmente desapareceu da grande mídia.

O que o Sr. pensa sobre a descentralização dos espaços da crítica de cinema que hoje migrou, sobretudo, para a internet?

J.C.S. A internet é uma das maiores conquistas da Humanidade no século passado, justamente pela democratização da informação e possibilidade de múltiplos discursos. Cinema é assunto recorrente na “grande rede” e, como tudo que abunda, é tão bem tratado numas vezes, quanto violentado noutras. Há de se ter muito zelo antes de considerar como válida qualquer informação que faça parte deste infinito painel composto pela internet. Mas sem dúvida que a proliferação de canais de fala é um fator estimulante, que um dia pode alcançar a capacidade de diluir, em níveis baixíssimos, o discurso proferido pelos que hoje detém o chamado poder de “formar opinião”. Sob este ponto de vista, a internet é uma bênção.

3 Comentário(s) para “Entrevista com João Carlos Sampaio”

  1. # Blogger á.

    As palavras de Sampaio me lembram outras palavras queridas e lúcidas, aquelas doces e luminosas letras de Serge Daney de quando o cinema francês procurava uma identidade... Cinema é cinema, não tem pátria.

    (Parabéns pela entrevista).  

  2. # Blogger Elva

    Acredito que há uma tentativa de veicular mais filmes nacionais na tv (há algum tempo isso ocorre), mas acima disso acredito que a população brasileira está mais interessada nos produtos audio-visuais nacionais.
    Não só o brasileiro, como também muita gente de "fora"; como li numa entrevista com Roberto Farias na Revista de Cinema.


    A arte é um reflexo da realidade, é complicado separar os dois, e o cinema é arte.

    Gostei muito da entrevista, parabéns...
    :)  

  3. # Anonymous Anônimo

    É muito bom ler um texto coerente e bem escrito falando desta arte, que é o cinema.
    Parabéns pela entrevista e pela escolha acertada.
    Adriana  

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