Spider

Muito boa a crítica do Cássio Starling Carlos sobre Spider do maravilhosamente esquisito David Cronenberg. Como já comentei em outros textos, Cronenberg produz uma arte incômoda ativando estratégias de apelo irresistíveis ao espectador. Puro terror mental. Segue a crítica publicada na Folha de Hoje.

Crítica/DVD

Cronenberg vai aos limites da realidade e do delírio em "Spider"

Divulgação

Ralph Fiennes que protagoniza "Spider - Desafie Sua Mente", do diretor David Cronenberg

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

"Ninguém sabe o que pode um corpo", desafiava Espinosa em sua filosofia materialista. Uma sucessão de hipóteses ao problema é o que o diretor David Cronenberg se empenhou em construir ao longo da primeira parte de sua obra. Inserida no horror, essa fase focalizava estranhas mutações físicas em seus personagens, invariavelmente conduzindo-os à perda de si e à morte.
A partir de 1988, com "Gêmeos - Mórbida Semelhança", os filmes de Cronenberg deslocaram o foco para o espaço mental, aquele em que as metamorfoses fazem parte da experiência comum a todos, afastando-se progressivamente do fantástico e suas anomalias. Em "Spider - Desafie Sua Mente", feito em 2002, a coerência temática e estética do diretor alcança um novo ápice ao narrar o processo de um personagem esquizofrênico.
A despeito de a estrutura simples da história ilustrar um caso clássico de trauma edipiano (um garoto testemunha os pais em situação sexual e projeta, a partir daí, uma estratégia de vingança), a perspicácia do diretor o afasta das facilidades do filme psicológico e da ilustração de teses psicanalíticas. Pois o que interessa ao cineasta, quando mergulha no universo da mente, é sua capacidade plástica. O desafio que o artista nos lança é: "Ninguém sabe o que pode uma imagem".
O personagem Spider, protagonizado com excelência e perfeito senso de contenção por Ralph Fiennes, é que tece o fio condutor de uma teia constituída exclusivamente por imagens. Se reais ou delirantes, tanto faz. O que importa a Cronenberg é testar a confiança do espectador na projeção. Desde "Videodrome" (1983), o diretor indaga o processo veloz de mutação da nossa percepção e de nossa progressiva incapacidade de distinguir entre o real e o virtual. Em suas mãos, o cinema torna-se uma ferramenta fundamental desse questionamento. Pois, como representação através de imagens, o cinema é um lugar especial para se experimentar a crença (ou a adesão) naquilo que se vê.
Projetado numa tela, tudo se torna veraz, e é a partir dessa situação que o cineasta se aprofunda no status de nossa experiência contemporânea. Spider pode até ser um caso extremo de doente mental, mas o quanto dele estão distantes aqueles que dedicam boa parte de seu tempo ao Second Life, transferindo-se para um outro mundo, construindo lá uma identidade e constituindo no virtual uma vida paralela?
A tecnologia, já apontava Cronenberg em filmes como "Videodrome", "eXistenZ" e "Crash", efetuou uma mutação em nosso imaginário (com efeitos irreparáveis em nossos modos de sentir e de pensar). A partir do momento em que a imagem conquistou o papel de moeda das trocas interpessoais e de índice exclusivo das coisas, o que ainda garante nossa capacidade de distinguir realidade, ficção, imaginação, delírio e alucinação?
"Spider" não traz respostas, ao contrário, só faz aumentar as dúvidas em relação à estratégia da aranha.


SPIDER
Direção: David Cronenberg
Distribuição: Versátil (R$ 37,50)

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